domingo, 8 de março de 2015

Feliz dia das Mulheres #SQN

Por Maíra Zapater

Porque (ainda) falar em direitos humanos das mulheres



Quando se fala em “direitos humanos das mulheres”, é comum a contestação no sentido de que todos são iguais perante a lei e que por isso “hoje já não faz sentido” falar em feminismo, quando as mulheres “já conquistaram tanta coisa” e “já tem tanto espaço no mundo”.
Apesar de todos esses “jás”, há muitos “aindas” que justificam que “ainda” sejam necessárias demandas específicas por direitos humanos das mulheres.
Ainda é necessário falar em direitos humanos das mulheres porque nossos direitos políticos não são plenamente exercidos, embora sejamos mais da metade do eleitorado do país, não representamos nem 10% das cadeiras do Congresso Nacional[1]. Aliás, ainda são dignos de nota fatos como  “a 1ª mulher presidenta”, “a 1ª mulher ministra do STF” – e ainda não tivemos a notícia da 1ª mulher presidenta da Câmara ou do Senado.
Ainda é necessário falar em direitos humanos das mulheres porque nossos direitos econômicos, sociais e culturais continuam um desafio a ser cumprido. Em 2014, o Brasil figurou na 79ª posição dentre 187 países do ranking do índice de desigualdade de gênero do PNUD[2], que tem por critérios fatores como o acesso à educação e saúde materna para avaliar as diferenças das condições materiais das vidas de homens e mulheres.
Ainda é necessário falar em direitos humanos das mulheres porque sofremos restrição à liberdade de expressão em blogs que tratam de temas relacionados ao feminismo, com o assédio virtual contendo ameaças de estupro e de morte às mulheres que ousam discutir o assunto[3].
Ainda é necessário falar em direitos humanos das mulheres porque nossa liberdade de ir e vir  é restringida e turbada com o assédio sexual nas ruas e outros espaços públicos[4].
Ainda é necessário falar em direitos humanos das mulheres porque nossos direitos sexuais são violados quando se questiona se uma universitária “bebeu demais” na festa da faculdade, quando foi atacada por um colega[5].
Ainda é necessário falar em direitos humanos das mulheres porque continuamos a ser presas por não ter garantidos direitos reprodutivos de forma integral, o que leva muitas mulheres a se arriscarem em clínicas clandestinas de aborto.
Ainda é necessário falar em direitos humanos das mulheres porque nosso direito à vida ainda é ameaçado – ou mesmo violado – em circunstâncias que frequentemente envolvem a violência de gênero, pois a violência letal contra mulheres é, em sua maioria, praticada dentro de nossas residências, por maridos, companheiros ou outros homens com quem mantemos relacionamentos afetivos.
Diante deste cenário de tantos “aindas”, é uma notícia aparentemente boa a aprovação pela Câmara dos Deputados do projeto de lei 8305/14 do Senado[6] que inclui o assassinato de mulheres como qualificadora do homicídio quando o crime envolve violência doméstica e familiar ou menosprezo e discriminação contra a condição de mulher, o que é identificado nos movimentos sociais de mulheres como “feminicídio”, em referência à rubrica desta conduta em outros países latinoamericanos.
Mas lanço aqui a provocação nadando contra a corrente – só pra exercitar: incluir o  feminicídio como crime específico (ainda que com natureza jurídica de qualificadora) é a solução para alterar este cenário?
Vislumbro, de saída, problemas jurídicos: para aplicar o novo dispositivo, o juiz deverá reconhecer no caso concreto que houve violência doméstica e familiar ou “menosprezo e discriminação contra a condição de mulher”. E cabe a pergunta: nossos operadores e operadoras do Direito estão familiarizados com o debate sobre discriminação de gênero? Nossas escolas jurídicas dão conta de treinar e capacitar estes operadores para que consigam separar seus valores morais particulares, bem como identificar corretamente um caso de violência letal decorrente de discriminação de gênero? Me pergunto como serão sopesados pelo Judiciário casos tão diversos  de assassinatos como, por exemplo, o de uma profissional do sexo por um homem que a explora, ou de uma mulher por seu marido em razão de uma infidelidade conjugal e ou de uma vítima de estupro por seu agressor desconhecido para que esta não denuncie o crime.
A questão de capacitação das operadoras e operadores do Direito em questões de discriminação de gênero traz outras perguntas: a “condição de mulher” mencionada na lei inclui as travestis, transsexuais e outras identidades de gênero associadas ao feminino e que também são alvo de discriminação, intolerância e violência?
Arrisco dizer que se esta discussão já estivesse aprofundada e amadurecida no universo jurídico, não haveria sequer necessidade de criação de mais um dispositivo criminal, uma vez que o homicídio já é qualificado pela torpeza da motivação de seu autor: e pode haver motivo mais torpe para matar alguém do que qualquer tipo de discriminação?
Mas digamos que esta alteração legal possa ser o começo de uma discussão, e  que o amadurecimento de argumentos vem do debate que talvez se inaugure a partir de então. A pergunta que cabe agora é: qual a finalidade de se criar uma lei penal para punir um crime praticado em razão de discriminação?
Quando se simboliza o repúdio social a uma conduta discriminatória em uma lei penal, o crime de discriminação passa a ser categorizado como um problema de maldade individual, escamoteando estruturas sociais e culturais que naturalizam violências endêmicas e históricas. Transmite-se a falsa ideia de que aquele indivíduo “mau” é que é o problema, e por isso deve ser punido exemplarmente, e, uma vez punidos todos os vilões da história, estaremos livres para sermos felizes para sempre.
Esquece-se de que a lei penal somente pode ser aplicada depois de ocorrido o crime, e, por óbvio, não garante direitos para  a vítima. Mulheres são assassinadas porque as diferenças existentes entre homens e mulheres são culturalmente transformadas em desigualdades desvantajosas para o gênero feminino, e é a naturalização destas desigualdades que constrói a ideologia sexista legitimadora do preconceito e da discriminação.
Sim, já há igualdade entre homens e mulheres na Constituição Federal – mas vale lembrar que mesmo esse “já” tem apenas 27 anos, pois este texto constitucional de 1988 é o 1º entre os 7 que o Brasil já teve a conter expressamente a previsão de igualdade formal entre os sexos. Mas para alcançar a igualdade material, ainda há um longo caminho a percorrer, e é preciso questionar se o trajeto da criminalização de violações de direitos humanos de mulheres é o mais curto e eficaz.


Maíra Zapater é graduada em Direito pela PUC-SP e Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e doutoranda em Direitos Humanos pela FADUSP. Professora e pesquisadora, é autora do blog deunatv

[1] Dados disponíveis nas estatísticas das eleições 2014, no site do Tribunal Superior Eleitoral: http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais-2014-resultado .
[2] Relatório completo do PNUD disponível em: http://www.pnud.org.br/noticia.aspx?id=3909
[3] Conforme noticiado pela Folha de São Paulo em fevereiro: http://www1.folha.uol.com.br/tec/2015/02/1593592-mulheres-sofrem-ameacas-de-estupro-ao-defender-feminismo-na-internet.shtml
[4] O tema ainda é controverso. Vale acompanhar as discussões geradas pela campanha Chega de Fiu Fiu, do site Think Olga (http://thinkolga.com/chega-de-fiu-fiu/), como nesta matéria da Folha de São Paulo: http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/2014/03/1422112-mulheres-se-impoem-contra-cantadas-de-rua-e-criam-grupos-para-entender-feminismo.shtml .
[5] Como se observa em diversos relatos prestados na CPI instaurada na ALESP para apuração de casos de violência nas universidades estaduais: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2014/12/alesp-instala-cpi-para-apurar-abuso-na-usp-e-em-outras-universidades.html

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