Por Maíra Zapater
Porque (ainda) falar em direitos humanos das mulheres
Quando se fala em “direitos humanos das
mulheres”, é comum a contestação no sentido de que todos são iguais
perante a lei e que por isso “hoje já não faz sentido” falar em
feminismo, quando as mulheres “já conquistaram tanta coisa” e “já tem
tanto espaço no mundo”.
Apesar de todos esses “jás”, há muitos
“aindas” que justificam que “ainda” sejam necessárias demandas
específicas por direitos humanos das mulheres.
Ainda é necessário falar em direitos
humanos das mulheres porque nossos direitos políticos não são plenamente
exercidos, embora sejamos mais da metade do eleitorado do país, não
representamos nem 10% das cadeiras do Congresso Nacional[1].
Aliás, ainda são dignos de nota fatos como “a 1ª mulher presidenta”,
“a 1ª mulher ministra do STF” – e ainda não tivemos a notícia da 1ª
mulher presidenta da Câmara ou do Senado.
Ainda é necessário falar em direitos
humanos das mulheres porque nossos direitos econômicos, sociais e
culturais continuam um desafio a ser cumprido. Em 2014, o Brasil figurou
na 79ª posição dentre 187 países do ranking do índice de desigualdade
de gênero do PNUD[2],
que tem por critérios fatores como o acesso à educação e saúde materna
para avaliar as diferenças das condições materiais das vidas de homens e
mulheres.
Ainda é necessário falar em direitos
humanos das mulheres porque sofremos restrição à liberdade de expressão
em blogs que tratam de temas relacionados ao feminismo, com o assédio
virtual contendo ameaças de estupro e de morte às mulheres que ousam
discutir o assunto[3].
Ainda é necessário falar em direitos
humanos das mulheres porque nossa liberdade de ir e vir é restringida e
turbada com o assédio sexual nas ruas e outros espaços públicos[4].
Ainda é necessário falar em direitos
humanos das mulheres porque nossos direitos sexuais são violados quando
se questiona se uma universitária “bebeu demais” na festa da faculdade,
quando foi atacada por um colega[5].
Ainda é necessário falar em direitos
humanos das mulheres porque continuamos a ser presas por não ter
garantidos direitos reprodutivos de forma integral, o que leva muitas
mulheres a se arriscarem em clínicas clandestinas de aborto.
Ainda é necessário falar em direitos
humanos das mulheres porque nosso direito à vida ainda é ameaçado – ou
mesmo violado – em circunstâncias que frequentemente envolvem a
violência de gênero, pois a violência letal contra mulheres é, em sua
maioria, praticada dentro de nossas residências, por maridos,
companheiros ou outros homens com quem mantemos relacionamentos
afetivos.
Diante deste cenário de tantos
“aindas”, é uma notícia aparentemente boa a aprovação pela Câmara dos
Deputados do projeto de lei 8305/14 do Senado[6]
que inclui o assassinato de mulheres como qualificadora do homicídio
quando o crime envolve violência doméstica e familiar ou menosprezo e
discriminação contra a condição de mulher, o que é identificado nos
movimentos sociais de mulheres como “feminicídio”, em referência à
rubrica desta conduta em outros países latinoamericanos.
Mas lanço aqui a provocação nadando
contra a corrente – só pra exercitar: incluir o feminicídio como crime
específico (ainda que com natureza jurídica de qualificadora) é a
solução para alterar este cenário?
Vislumbro, de saída, problemas
jurídicos: para aplicar o novo dispositivo, o juiz deverá reconhecer no
caso concreto que houve violência doméstica e familiar ou “menosprezo e
discriminação contra a condição de mulher”. E cabe a pergunta: nossos
operadores e operadoras do Direito estão familiarizados com o debate
sobre discriminação de gênero? Nossas escolas jurídicas dão conta de
treinar e capacitar estes operadores para que consigam separar seus
valores morais particulares, bem como identificar corretamente um caso
de violência letal decorrente de discriminação de gênero? Me pergunto
como serão sopesados pelo Judiciário casos tão diversos de assassinatos
como, por exemplo, o de uma profissional do sexo por um homem que a
explora, ou de uma mulher por seu marido em razão de uma infidelidade
conjugal e ou de uma vítima de estupro por seu agressor desconhecido
para que esta não denuncie o crime.
A questão de capacitação das operadoras
e operadores do Direito em questões de discriminação de gênero traz
outras perguntas: a “condição de mulher” mencionada na lei inclui as
travestis, transsexuais e outras identidades de gênero associadas ao
feminino e que também são alvo de discriminação, intolerância e
violência?
Arrisco dizer que se esta discussão já
estivesse aprofundada e amadurecida no universo jurídico, não haveria
sequer necessidade de criação de mais um dispositivo criminal, uma vez
que o homicídio já é qualificado pela torpeza da motivação de seu autor:
e pode haver motivo mais torpe para matar alguém do que qualquer tipo
de discriminação?
Mas digamos que esta alteração legal
possa ser o começo de uma discussão, e que o amadurecimento de
argumentos vem do debate que talvez se inaugure a partir de então. A
pergunta que cabe agora é: qual a finalidade de se criar uma lei penal
para punir um crime praticado em razão de discriminação?
Quando se simboliza o repúdio social a
uma conduta discriminatória em uma lei penal, o crime de discriminação
passa a ser categorizado como um problema de maldade individual,
escamoteando estruturas sociais e culturais que naturalizam violências
endêmicas e históricas. Transmite-se a falsa ideia de que aquele
indivíduo “mau” é que é o problema, e por isso deve ser punido
exemplarmente, e, uma vez punidos todos os vilões da história, estaremos
livres para sermos felizes para sempre.
Esquece-se de que a lei penal somente
pode ser aplicada depois de ocorrido o crime, e, por óbvio, não garante
direitos para a vítima. Mulheres são assassinadas porque as diferenças
existentes entre homens e mulheres são culturalmente transformadas em
desigualdades desvantajosas para o gênero feminino, e é a naturalização
destas desigualdades que constrói a ideologia sexista legitimadora do
preconceito e da discriminação.
Sim, já há igualdade entre homens e
mulheres na Constituição Federal – mas vale lembrar que mesmo esse “já”
tem apenas 27 anos, pois este texto constitucional de 1988 é o 1º entre
os 7 que o Brasil já teve a conter expressamente a previsão de igualdade
formal entre os sexos. Mas para alcançar a igualdade material, ainda há
um longo caminho a percorrer, e é preciso questionar se o trajeto da
criminalização de violações de direitos humanos de mulheres é o mais
curto e eficaz.
Maíra Zapater é
graduada em Direito pela PUC-SP e Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É
especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do
Ministério Público de São Paulo e doutoranda em Direitos Humanos pela
FADUSP. Professora e pesquisadora, é autora do blog deunatv.
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